Leia íntegra da entrevista da banda Dominatrix
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Elisa – O último registro é o EP, de 2009, que tinha músicas em português. Fizemos um show e pegamos a grana para gravar. Mas fizemos também uma apresentação no Trama Virtual tocando música inédita, e ficou esse registro na internet.
Com esses shows neste ano a gente está animada e pensando em gravar de novo. Só precisa organizar a vida, porque está todo mundo muito ocupado. Talvez no fim do ano a gente sente e faça um cronograma. Queria muito fazer um disco, a Marina também. Faz 20 anos do primeiro álbum e muita gente pergunta se a gente vai relançar e tal, então precisamos entender o que é melhor para a banda fazer. Se vamos juntar dinheiro para gravar um disco novo ou se a gente relança o “Girl Gathering”. Pensar como fazer, talvez um financiamento coletivo.
Como veio o convite do Distúrbio Feminino?
Mariângela – O Distúrbio Feminino é uma plataforma de divulgação de produção feminina. É um blog, podcast e também lança os zines impressos, que segue a linha do “faça você mesma”, uma coisa bem das antigas. E o foco sempre foi punk, hardcore feminista, alternativo, Esse é o terceiro ano do festival, que tem crescido.
Elisa – As pessoas querem muito ir a esses eventos. A gente fez seis edições do LadyFest, foi muito legal. Desde que a gente parou, todo mundo cobra mais, tem muita gente querendo ir. Houve um lançamento de um fanzine há um tempo atrás, no Centro Cultural São Paulo, e as meninas me chamaram para fazer um pocket show acústico do Dominatrix. E foram 300 pessoas, algo assim. As pessoas estão realmente querendo se encontrar, porque dividem a mesma cultura.
Hoje o movimento de punk feminino está mais forte?
Elisa – Eu sempre recebo demo e fanzine o tempo todo, guardo tudo isso em casa. Então posso mostrar que a movimentação das bandas de meninas não parou. Claro que ganha força quando você promove eventos, reaquece. Em torno do LadyFest e agora do Distúrbio Feminino, você pode ver a coisa acontecendo. Para quem acompanha de longe, pode vir uma sensação de que uma hora tem um boom, depois a movimentação diminui. Para mim, que além da banda tenho uma participação na articulação feminista no Brasil, em todo lugar que estou fazendo uma palestra ou uma oficina aparece alguém com uma demo. A coisa não parou. Mas você precisa de uma cena para manter o aquecimento das manifestações feministas independentes.
Mas isso não era comum quando vocês começaram.
Elisa – Nos anos 1990 tinha muita mulher tocando, você ligava na MTV e via meninas em várias bandas. Tinha L7, Hole, Babes in Toyland.
Fernanda – Tinha a moda de ter uma menina no baixo.
Elisa – Eu e minha irmã ouvíamos música desde pequenininhas. Eu ouvia de tudo, comprava vinil no supermercado, de banda de heavy metal a pop rock. Mas quando uma mulher pega no instrumento existe uma resposta muito forte da sociedade, principalmente no Brasil. Você não começa a tocar e fica imune a críticas. A gente começou a sentir muito cedo que existia uma questão estranha em torno de a gente querer tocar. Aí, um dia, minha mãe falou: “Acho que vocês são feministas!” [risos] Na escola, em todo lugar, as pessoas se espantavam: “Mas você toca guitarra?”
Mariana – Ainda hoje é assim.
Elisa – E o estranhamento vai se reciclando. Hoje as pessoas se espantam e dizem: “Mas você ainda toca?” O cara pode continuar fazendo sua peladinha de terça com os amigos, mas a mulher não pode seguir fazendo o que dá prazer? Quando a gente percebeu esse tabu em relação às mulheres no rock, a gente passou a colocar isso nas letras. Aí surgiu para nós o Bikini Kill.
A banda que iniciou o Riot Grrrl.
Elisa – A gente juntava a mesadinha e comprova os jornais gringos de música. E o que era esse tal Bikini Kill? Então a gente foi na Galeria do Rock e fez a encomenda do CD, às cegas. Aí chegou, 40 dias depois, e a gente se viu naquilo. Começamos a nos identificar como uma banda punk feminista.
Como é o envolvimento de vocês com a música?
Fernanda – Minha vida é de freelance total. Toco, dou aula, trabalhos covers, essa vida de trabalhar com música precisando fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Em banda de mulheres, com homens. Mas o estranhamento continua. Você chega com a banda e pensam logo que você é a cantora, ou pior, a mulher de um dos músicos.
Nina – Às vezes, quando você quer pegar um trabalho, só por ser mulher você tem que fazer um teste. Os caras não confiam que você sabe tocar só pelas referências profissionais.
Fernanda – Eu fiz faculdade de música. Quando entrei, eram seis meninas baixistas, mas só eu me formei. Rola muito na música popular de mulher ser pianista ou cantora. Nas aulas, até os professores não davam muita moral para as mulheres. Eu me formei em 2006, não era para ser assim.
Nina – Eu era advogada, trabalhava com isso e larguei para fazer música, o que já foi um grande problema na família. Vivo só de música desde 2007. A maioria dos trabalhos era em bandas de heavy metal e bandas que só tinham homens. E em todo lugar pensavam que eu era só uma amiga dos caras.
Elisa – Na Virada deste ano isso aconteceu comigo. O cara queria me tirar do palco.
Fernanda – Somos tratadas como acompanhantes.
Nina – Uma banda só de mulheres chama atenção, você pode tentar levar isso para um lado bom.
Elisa – Mas ao mesmo tempo tem que ver qual é a qualificação dessa atenção. Tem o que olha para conferir se a menina toca bem.
Nina – Gosto de pensar mesmo nessa pegada você pode atrair pessoas que valem a pena.
Elisa – Dá para salvar alguns.
Marina – Toquei em muitas banda, muito cover de metal. Das oito às cinco eu dou aula de musicalização infantil. Eu não tenho mais paciência para dar aula de instrumento, mas como eu me formei em pedagogia, foi uma união muito feliz, juntar o magistério com a música. Faço os frilas tocando, mas preciso desse outro lado. Não só pela questão de grana, mas para me alimentar do retorno dessa molecadinha. É bem louco você ver um garoto que quer tocar piano e não ser um dos Power Rangers.
Elisa – Tive várias bandas. Meu último trabalho, no ano passado, foi um EP para o Fundo de Populações da ONU. Produzi esse EP de hip hop com cinco artistas: Livia Cruz, Luana Hansen, Drika Ferreira, Elllen Souza e Brisa Flow. Compus junto com elas músicas com a temática do Estado laico. Contra o fundamentalismo, passando por questões da mulher, legalização do aborto, cultura do estupro, violência obstétrica. A gente fez o EP em um mês e meio. Jogamos no Spotify e a galera está ouvindo muito. É superlegal, porque eu nunca tinha feito hip hop , tive que estudar muito. É outra pegada. O punk rock é mais uma massa de som. O Dominatrix se destacou porque sempre foi mais melódico. Mas no rap é outra coisa, a mensagem está na palavra, a letra vem primeiro.
Com as redes sociais fica mais fácil encontrar sua turma, não? Isso não tinha tanta força quando a banda começou.
Elisa – A gente vai tocar uma música do primeiro disco que fala dessa solidão que você sente quando descobre novas formas de pensar. Quando você passa por uma transformação e as pessoas a seu redor ainda não cataram aquilo. Isso vale para o feminismo, para todas as lutas de esquerda, até você achar seu bando demora um pouco. E aí fala um pouco dessa solidão quando eu encontrei o feminismo. Li que a Waleska Popozuda mudou “Beijinho no Ombro” para uma letra feminista. Achei que ela tinha mudado sua visão, mas é uma campanha da Seda.
Mariângela – Foi uma jogada de marketing para atrair um público feminino novo, que busca se espelhar na artista, ou foi um insight?
Elisa – Não estou criticando, estava fazendo uma reflexão, mas entendo o que você está falando. Uma propaganda de xampu com mensagem feminista. Então o feminismo está na TV porque a Fátima Bernardes fala de empoderamento. Mas, como feminista, a gente olha indicadores. A violência contra a mulher aumentou, em dois anos o assassinato de mulheres negras dobrou, há mais de uma centena de projetos de lei contra a Lei Maria da Penha, dizem que é uma lei inconstitucional, olha a resposta. Ao mesmo tempo que o feminismo chega na mídia, a gente tem de entender qual é a qualidade do discurso, qual é o limite da representatividade. Como a Angela Davis dizia, você coloca uma mulher na televisão, mas que mulher é essa? Se você inclui uma mulher num mar de homens, você está dizendo que a coisa mudou ou que as outras mulheres são fracas?
Isso acontece na música. Tem pouca mulher na música porque elas não seguram as pontas, elas não tocam tão bem quanto os homens. Mas olha também a força que vai contra a gente. Aí, quando aparece uma mulher de destaque na música, os caras dizem: “Tá vendo? Vocês todas que não se esforçaram, porque ela tá aí.” Esse é um discurso muito da cultura brasileira para todos os recortes. De raça, de gênero.
Ao mesmo tempo que você tem essa disseminação do discurso feminista que dá a impresso que melhorou, a gente questiona a representatividade e a qualidade desse discurso, e há uma resposta que não aparece na divulgação desse feminismo mais pop, A população em geral não sabe que os indicadores estão ruins, então a gente tem que dar essas notícias negativas, não ficar só no empoderamento.
Sou coordenadora de comunicação de uma ONG feminista, então a gente monitora o que está acontecendo no Congresso. Os serviços de aborto legalizados estão fechando a cada dia. A mulher tem de viajar mais de 100 quilômetros para conseguir um aborto dentro da lei. Imagine a vulnerabilidade das mulheres que não têm nem esse acesso. Eu me preocupo que a propagação de um feminismo mais pop sirva para mascarar essa resposta. É preciso problematizar, manter o debate.
Existe uma cena atual de punk feminista?
Elisa – As conversas são comuns, os temas são os mesmos, as meninas ouvem as mesmas bandas, acompanham ativistas que estão dentro de um mesmo espectro. Você pode dizer que existe uma cena e ela passa a ser visível quando você faz um evento desses. No Brasil inteiro tem festivais feministas. Às vezes eu não vou com o Dominatrix, mas vou para falar. Campinas, Salvador, Florianópolis. Muito fanzine, roda de conversa. A cena existe, porque eu estou nela. Como o feminismo rompe com algumas ideias ligadas á comercialização, talvez ele não seja visto como uma coisa vendável, como era o grunge, por exemplo. Não temos uma camisa de flanela para todo mundo, porque, felizmente, o feminismo se diversificou tanto.
Vocês pretendem voltar a gravar?
Elisa – A gente vai botar o “Girl Gathering” oficialmente no Spotify, por conta do aniversário. No ano que vem faremos também com o segundo disco, que completará 20 anos. Acho que até o fim do ano a gente pode pelo menos lançar um vinilzinho do “Girl Gathering”.